Pragas Americanas
As pragas americanas condicionaram a viticultura na segunda metade do século XIX. Foram três ondas de destruição da vinha, as quais puseram em causa, durante muitas décadas, a viticultura europeia. Iniciou‑se com o ataque de Oidium Tuckeri (Uniculum necator, Berk) que invadiu a Europa, em 1945, e alastrou em poucos anos a quase todas as regiões vitícolas da Ibéria. Foi denominado em Espanha como Cebiza ou Cencilla, e em Portugal como Oídio.
Antes da descoberta da aplicação de enxofre, a doença foi combatida tentando‑se importar plantas com resistência ao agente patogénico, tendo como consequência a introdução, sem se saber, do igualmente prejudicial piolho da raiz da videira americano, a Filoxera (Dactulosphaera vitifolii; Fitch). Este insecto, teve uma difusão lenta em toda a Ibéria (ver Fig. 84). Da mesma forma, nos anos que se seguiram, foi introduzido o Míldio (Peronospora, Plasmopora vitiola; Berk & Curt.). Este fungo causou os piores danos à viticultura ibérica.
O desenvolvimento vitícola da Ibéria entrou em crise permanente durante cerca de meio século, com enormes prejuízos para a agricultura e a população das regiões vitivinícolas. Nos anos de 1870‑1930, foram destruídos e arrancados, em alguns casos várias vezes, milhões de hectares de vinha. Repare‑se que as pragas apareceram com um certo atraso em Espanha, e desde logo levaram a um crescimento muito acentuado na procura de vinho, por parte dos países inicialmente afectados.
O primeiro desastre natural foi o ataque do Oídio
Em 1845, apareceram em Margate (perto de Londres), nas estufas do Senhor Tucker, os sintomas desta doença. Com a velocidade do vento, o flagelo foi difundido por toda a Europa. Pela primeira vez, foi descoberto em Peso da Régua (Douro), donde emigrou para Espanha. Dada a violência sintomática do ataque, os viticultores ficaram de tal maneira assustados que foram arrancadas as vinhas, numa reacção de pânico, para serem substituídas por castas de V. vinifera, que se suspeitava serem resistentes, ou então, o que ainda foi pior, por castas híbridas americanas infestadas com o segundo flagelo, a filoxera.
Embora o enxofre, com todos os seus efeitos na estabilização e produção do vinho, fosse conhecido, também foi conhecido, de imediato, o efeito de protecção contra o fungo. Já em 1846, o cientista inglês, de Canterbury, Senhor Kyle, reconheceu a capacidade curativa e preventiva do enxofre, experimentando‑o com diversas técnicas e métodos de aplicação (Visconde de Vilarinho, 1891: 98). O conhecimento dos processos fisiológicos da patogenia e a respectiva sensibilidade ao produto atrasaram‑se na prática, devido à falta de conhecimentos sobre a forma de aplicação adequada.
A segunda praga americana foi a filoxera
A filoxera (Dactulosphaera vitifolii; Fitch), parasita da família dos piolhos, vinda da costa oriental da América de Norte, região sudeste, foi introduzida nos anos 60 do século XIX, via Inglaterra e Londres, pelo fornecimento de cepas à região do Sul da França. Na Ibéria, entretanto, apareceu com atraso, ou seja, apenas a partir dos anos 80 desse século. O atraso na região central, na primeira década do novo século, foi ainda maior.
O Governo francês convocou, em 1870, uma comissão para defesa e luta contra a filoxera, sob a presidência de Louis Pasteur, que analisou cerca de 700 propostas, sem resultados concretos. Com esta actividade desenvolveu‑se uma ciência nova, destinada à defesa contra o insecto, inicialmente ligada à ampelografia. Porém, em consequência de uma impressionante burocracia administrativa na viticultura europeia, a qual se mantém embora transformada até hoje, apesar de a resolução ter sido outra, praticou‑se uma técnica conhecida desde o tempo da viticultura romana: a enxertia. Deste modo, muitos profissionais questionam‑se sobre se a enxertia não terá sido um mal ainda pior do que o próprio flagelo natural.
A enxertia (sobre‑enxertia) de cepas já era conhecida na Antiguidade. Catão, o Velho (34‑149 a. C.) refere esta técnica na sua obra Da Agricultura. No passado, a enxertia de videiras utilizou‑se basicamente com objectivo de mudança varietal. Depois de se ter compreendido a resistência da raiz das espécies americanas, foram importadas e utilizadas, na prática vitícola, variedades/espécies americanas, como a Vitis riparia, Vitis berlandieri, Vitis rupestris, Vitis cinerea e, da Ásia, a Vitis amurensis, para serem enxertadas com garfos de variedades endémicas (Vitis vinifera). Assim foi possível ultrapassar o ciclo complicado da multiplicação do flagelo.
Em Espanha, a filoxera foi descoberta no ano de 1876 (Hidalgo, 1993: 266) no lugar de Indiana, perto de Moclinejo, na província de Málaga. Já em 1878, foi detectada a sua presença na Costa Brava, perto Gerona, e nalgumas outras localidades. A partir de 1882, foi registado também em Villadervos, no vale de Verín, perto de Orense. A partir destas localidades, a filoxera invadiu todos lugares vitícolas de Espanha. Dos mais de 2.000.000 ha de vinhas espanholas no ano 1877, restaram, em 1903, somente 860.000 ha livres de filoxera. Em 1918, apenas as Ilhas Canárias estavam isentas do flagelo (J. Piqueras Haba, 2001). Esta invasão mudou a paisagem vitícola em Espanha, inclusivamente o encepamento varietal, de forma radical. Pensa‑se que o flagelo foi introduzido juntamente com as variedades/espécies resistentes ao oídio, em particular, novas plantações com a híbrida interespecífica (V. vinifera x V. labrusca) Isabella, da Carolina do Sul (USA), a qual, de facto, possui elevada resistência criptogâmica (míldio e oídio), mas reduzida tolerância à filoxera.
Em inúmeras pesquisas foram descritos os problemas e os métodos mais eficazes para combater o flagelo: a utilização de carbono‑enxofre, em concentrações mortíferas para os viticultores, e, como alternativa, a inundação das vinhas com água. Finalmente, procuravam‑se zonas húmidas e frias, o que permitia reduzir a reprodução do parasita. A difusão da videira americana híbrida deverá ter sido a principal razão da invasão da filoxera em Espanha; no entanto, a difusão natural desta praga ocorreu com velocidade reduzida, o que é comprovado pelo atraso, de várias décadas, no centro da Ibéria.
Somente após a introdução da videira americana como porta‑enxerto, a reestruturação da vinha passou a ser uma realidade. Mas a superfície vitícola nunca mais atingiu a dimensão de outrora, variedades antigas desapareceram, novas castas e castas de produção exagerada de outras regiões foram introduzidas.
De especial gravidade foi o impacto da invasão da filoxera nos arquipélagos atlânticos portugueses da Madeira e dos Açores. Praticamente só com medidas especiais nos anos 80 do séc. XX, e co‑financiamento da UE, foi possível substituir híbridos por variedades de V. vinifera.
A Catalunha é contígua à região francesa do Roussilhão, donde a filoxera entrou em Espanha.
A sub‑região de Girona degradou‑se, passando de 37.856 ha (1877) para 5.518 ha (1889); as regiões separadas de Girona pela montanha (Barcelona, Lleida, Tarragona) não foram afectadas tão cedo, e assim, devido à enorme procura de vinho por parte da França, expandiram‑se, em 1877, de 200.585 ha para 363.085 ha (1889); mas depois caíram, até 1902, para 196.220 ha, porque a filoxera fez ali a sua aparição (Haba, 2002: 955).
E interessante saber que, em 1885, em muitas sub‑regiões da Ibéria, sobreviveram as videiras de pé franco, sendo os vinhos muito apreciados, com uma procura forte, por parte dos países e regiões afectados pelo flagelo. Deve dizer‑se que já existiam grandes instalações científicas e de demonstração, com combinações bem sucedidas das castas com porta‑enxertos americanos, sem despertar grande atenção do sector profissional.
A terceira praga: Plasmopora vitícola, ou Míldio.
Esta terceira e última foi talvez a de maior impacto na Viticultura. Ocorreu por um agente patogénico já observado, em 1887, por Vialat (França), em todo o Canadá e no Leste da América de Norte, conhecido por Míldio (Pierre Galet, 1977: 89). Em 1878 foram descobertas na Gironde, numa planta híbrida Jacquez, as manchas de óleo típicas desta doença. A partir de 1880, esta enfermidade criptogâmica divulgou‑se em toda Europa. A expansão ocorreu tão rapidamente que não fazia sentido a elaboração de um mapa cronológico do seu progresso.
Os prejuízos manifestaram‑se em vários aspectos: a destruição das folhas tem a mesma consequência económica que a podridão da uva. Na procura de um combate eficaz a esta doença contagiosa, passou‑se muito tempo, apesar de cientistas de nomeada, como Vialat, Millardet, Berkeley e Patrigeon rapidamente terem analisado o funcionamento fisiológico do agente patogénico. A utilização do sulfato de cobre revelou‑se uma medida bastante complexa (Galet, 19877: 142). Uma defesa de elevada segurança apenas é possível com recurso a fitofármacos sistémicos, e ainda curativos, desenvolvidos no final do século XX.
Portadores directos americanos e híbridos (HPD)
Estas plantas foram a primeira resposta com sucesso evidente. Desde o século XVIII, algumas delas já eram conhecidas, por informações da Nova Inglaterra sobre estas espécies de Vitis com bagos grandes. Enquanto as vinhas francesas, devido à praga, tiveram de ser arrancadas, refere Millardet (1885: V) que M. Lalimant, de Bordéus, em 1869, já tinha explicado que algumas espécies americanas resistiam à filoxera, ao passo que outras variedades morriam. Referiu ainda que Planchon, por ordem do ministério, realizou uma viagem à América para analisar este problema
Sahut (1885: 51‑60) foi o primeiro a descrever um ensaio de resistência de castas europeias, pois havia uma tentativa de recuperar a vinha europeia com híbridos americanos. Refere‑se a uma colecção de videiras em La Sorrez, perto de Monpellier; depois descreve os problemas da adaptação ao flagelo, em comparação com as castas nobres francesas. De facto, foram encontradas nesse tempo muitas espécies americanas suspeitas de se tratar de híbridos espontâneos interespecíficos. Porém, a maioria dos híbridos de então já resultaram de cruzamentos intencionais. Sahut e outros autores suspeitaram e tentaram explicar a reduzida qualidade do vinho com a reduzida aptidão ao terroir da França, de clima diferente. Mas finalmente estas plantas acabaram por servir, de outra maneira: com a sobre‑enxertia serviram como porta‑enxertos, favorecendo a reutilização da plantação.
A partir de 1880, realizaram‑se ensaios, sistematicamente, com a enxertia (ver Fig. 95 – próximo capítulo). É espantoso que estes ensaios tenham acontecido tão tarde, deixando suspeitar que a técnica da sobre‑enxertia tinha sido esquecida, ou simplesmente nunca mais utilizada na prática profissional. Os resultados dos ensaios acima descritos foram apresentados em congressos europeus, pela Comissão Central Antifiloxérica. As colecções de Vitis das castas e híbridos resultaram em Espanha e Portugal, concludentemente (Menezes, 1987: 5‑139). Parece evidente que, com estas colecções, aumentou na Península Ibérica a consciência varietal e a “arte” da ampelografia (ver tabela V 1‑3).
Entretanto, também o Míldio invadiu a Ibéria, pondo em causa os ensaios de enxertia. Muitos profissionais optaram então pelo uso de híbridos americanos, até ter sido encontrada a resposta com o sulfato de cobre e a calda bordalesa. Assim ocorreu uma nova fase de plantação com Vitis resistentes aos três flagelos ao mesmo tempo (S. Sahut, 1885: 57). Na Europa utilizaram‑se os conhecidos híbridos de primeira geração (HPD) como a Isabella, o Scuppernong, Cunningham, Slonos, Riparia, Vialat, Taylor e Jaquez, depois uma nova geração de cruzamentos (ver Millardet, Fig. 87).
s velhos híbridos foram, entretanto, a grande moda, e regiões inteiras no continente e nas ilhas da Madeira e Açores adoptaram‑nos. Millardet (1885: 153) tentou dividir estas formas de portadores directos em “espèces sauvages” e híbridos de obtenção artificial. Estes últimos foram classificados conforme as suas características típicas e tolerância às condições naturais (solo e clima), em conformidade com a sua origem, o que se revelou posteriormente muito útil na aptidão a porta‑enxertos. P. Sahut (1885: 149) descreve ainda mais 35 outros portadores directos.
Como capítulo importante, desenvolveu‑se o conhecimento sobre o comportamento dos porta‑enxertos, de certa maneira um efeito secundário da hibridação, e finalmente a salvação da vinha europeia. Os valores adicionais definiram os porta‑enxertos. Vigor distinto, resistência à secura ou à humidade, tolerância aos vírus ou Nematodos, adaptação a características do solo, afinidade com as castas Vitis vinifera, são a razão de ainda hoje existir a investigação em porta‑enxertos. (L. Fidalgo, 1999: 149)
Os consumidores dificilmente aderiram ao sabor dos vinhos com o “Foxy ton” das variedades híbridas. Foi o problema do preço e o dos custos de produção que abriram o mercado às bebidas de híbridos. O vinho Vitis vinifera teve de ser importado de longe, o que se reflectiu no preço. Parece que devido ao atraso do ataque da filoxera, os países ibéricos puderam aproveitar os avanços na defesa contra os flagelos, realizados na Alemanha e em França. Algumas zonas sofreram menos com a crise provocada pelo uso dos híbridos, bem como com a falsificação dos vinhos artesanais, na sequência do grande boom inicial de exportação para os países do Norte.
Obtenção de híbridos com sangue Europeu
A segunda geração de variedades interespecíficas iniciou‑se sistematicamente nos anos 80 do século XIX. Millardet refere a transmissão genética da resistência à filoxera conforme as regras da hereditariedade. Isso afectou a actividade dos agrónomos e biólogos, em repensar e procurar uma solução de optimização enológica e cultural de novas variedades interespecíficas.
Baseando‑se nos conhecimentos dos Bouchets (A. Millardet, 1885), foram realizados cruzamentos em grande escala. Assim, não foi possível adquirir vinhos de qualidade dos híbridos americanos, da primeira geração, e por isso foram repetidos os cruzamentos com castas Vitis vinifera, com o objectivo de eliminar o sabor “Fox” negativo (do Malvidin 3‑5 diglicósido). Estas novas obtenções tornaram‑se um grande negócio para o obtentor. Com cada re‑cruzamento, as obtenções aproximavam‑se cada vez mais das castas europeias. Pagaram aos viticultores de Espanha e Portugal uma enormidade de dinheiro para receber esta nova geração de híbridos com sangue europeu.
De François Baco (1898) conhecem‑se as videiras Baco Noir e Baco Blanc, estas ainda hoje usadas para produção do Armagnac, em França. Albert Seibel, de Aubenas, foi talvez o mais conhecido obtentor, com as videiras Cascade, Rosette, Chancellor, Rougeon e Aurora. O obtentor Couderc, da mesma localidade (Aubenas), abriu uma guerra comercial com as suas criações de videiras. Betille Seyve criou o Seyval Blanc e, por ter casado com a filha do obtentor Villard, as criações foram denominadas Seyve‑Villard. Esta família obteve uma variedade ainda hoje plantada e base de novos programas de hibridação: o Chamboursin
Em Itália estiveram activos Bruni, Paulsen, Pirivani, Ruggeri e Prosoeri. Nas ilhas ibéricas e em algumas regiões continentais com condições favoráveis às pragas, foram plantadas Isabell, Cunningham, Hegemot e Jacquez, intensivamente. Estas produziram o vinho de cheiro, morangueiro ou americano. Não se conhecem ensaios próprios da hibridação interespecífica. Mas também não existem muitos documentos relativamente à distribuição dos híbridos da primeira nem da segunda geração, com excepção das ilhas atlânticas.
A enxertia
Parece que esta técnica já tinha sido utilizada pelos Romanos (F. Sahut, 1885: 179) Está descrita por Teofrasto, Catão, Virgílio, Plínio e Columela, mas também por autores ibéricos. Na Península foi pouco utilizada quando da invasão da filoxera. É sabido que uma vinha necessita de alguns anos para entrar em produção. Problemas de afinidade, reduzida produtividade, mas especialmente a contínua sensibilidade às doenças criptogâmicas impediram a rápida aceitação desta técnica pelo sector profissional, apesar dos seminários (1879) e publicações divulgando esta técnica, que favoreceu cada vez mais o vinho de qualidade europeia (Sahut, 1885).
A enxertia, provavelmente a primeira biotecnologia de importância, foi realizada tradicionalmente na planta já instalada. Técnicas manuais (copulação inglesa, enxertia de gomo, fenda cheia, o cadillac, etc.), já concorriam com técnicas mecânicas. Pouco depois, as duas técnicas concorriam e foram conversa entre os agricultores. Os da Ibéria acabaram por optar pela enxertia no local. F. Sahut (1885: 15) já conhece diferentes porta‑enxertos, dos quais nenhum está actualmente em uso. A alternativa, na sua época, foi: alta qualidade com uma tecnologia complicada, versus a nova dinâmica dos híbridos da segunda geração.